Indireto Livre

Eu escrevi o texto abaixo pra uma aluna, aaaaaaanos atrás.

Ele continua útil, no entanto.







Todas as formas de discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre são concebidas como formas de "discurso citado". Ou seja, dentro da fala de um EU, insere-se a enunciação de um outro enunciador (ou outros)

Sempre que um EU fala e responde pelas próprias palavras (ou seja, sempre que à pergunta "Quem foi que disse isso" ele pode responder dizendo "Fui eu") nós estamos FORA do campo do discurso citado.

É uma questão formal. Não de conteúdo.

"Em condições normais de temperatura e pressão, a água ferve a 100 graus."

"Eu gosto de doce de leite."

"Meu irmão é gordo."

"A minha mulher está preocupada."

"Henry James nasceu em Nova York."

"Ali na rua, ontem de noite, tinha um maluco falando sozinho."

"O senhor leopold bloom mastigava com deleite as vísceras de vários animais."

Essas são TODAS frases de um discurso que a gente poderia chamar de "discurso de primeira ordem". Discurso de um EU. não cabe pensar nos termos DD, DI e DIL pra caracterizar nenhuma delas. Elas não pertencem ao universo do discurso citado, muito embora possam (e devam, em certos casos) entrar em hipóteses, constatações e suposições sobre estados mentais etc de outras "pessoas". 

Elas continuam, todas, sendo discurso de primeira ordem.

Assim, um narrador, mesmo um narrador em terceira pessoa, sempre emite as SUAS frases num discurso de primeira ordem. Num discurso de "primeira pessoa", como todo discurso (as terminologias "narrador em primeira pessoa" e "narrador em terceira pessoa" se referem aos USOS dessas pessoas verbais pelo narrador. Todo discurso é enunciado por uma primeira pessoa. Toda enunciação institui seu enunciador COMO primeira pessoa).

Não cabe qualificar as frases de narrador como DD, DI, DIL. Todos esses termos só podem passar a ser usados quando há legítima sobreposição de discursos; quando o narrador, por exemplo, inclui na sua fala a fala do outro. Quando diante da pergunta "Quem foi que disse isso", ele teria que responder "Foi ele".

E como isso se dá?

DISCURSO DIRETO

Aqui o que rola é a incorporação "direta" (tchanã!) da fala do outro. Ou seja, o discurso "citado" entra no discurso "citante" sem sofrer qualquer alteração.

Vamos usar de exemplo a frase "é difícil demais agradar esse chato", que um personagem poderia ter dito/pensado (sim, pra todos os efeitos, no mundo da ficção, e não na vida de fato, a fronteira entre disse e pensou é bem transponível. afinal, é pra isso que existem os vários graus de onisciência de narrador).

Em discurso direto, seria assim.

O senhor Laércio Flores entrou irritado na sala irritado com a conversa que teve com o gerente e disse:

- É difícil demais agradar esse chato

Com travessão e quebra de parágrafo, com aspas, entre travessões, dependendo da praxe editorial de cada tradição. O que importa é que a frase do senhor Flores é incorporada verbatim, sem alterações, e normalmente sua independência do contexto citante fica marcada graficamente. 

Ela fica "isolada"; não é "incorporada".

Além disso, repita-se, esse "discurso" que está sendo citado nem precisa ter sido "dito":

O senhor Laércio Flores se largou pesadamente na cadeira, irritado com a conversa que teve com o gerente, e pensou - é difícil demais agradar esse chato.

De um jeito ou de outro, há essa incorporação que não incorpora, que apenas acrescenta.

(nota de rodapé, esse verbo que introduz o discurso do outro, e que meio que caracteriza as formas mais claras do discurso citado, é chamado de verbum dicendi, verbo de dizer... disse, pensou, declarou, gritou, supôs, sussurrou, imaginou.... etc.)

DISCURSO INDIRETO

Aqui a frase é SINTATICAMENTE incorporada ao discurso citante. Não há quebra formal, como havia no caso do DD. O discurso citado passa a ser formalmente encampado pelo citante. 

Assim:

O Senhor Laércio Flores entrou na sala irritado com a conversa que teve com o gerente e disse que era difícil demais agradar aquele chato.

Veja que a semântica não muda. O senhor Flores continua dizendo a mesma coisa. O que muda é a forma de apresentação da palavra dele dentro da palavra do narrador. Aqui, o narrador é o único "enunciador", a única voz no texto, e ele "toma posse" da semântica do discurso do senhor Flores e a pronuncia dentro de uma frase, "formalmente" toda sua, que só tem um sujeito verbal etc... 

Veja que isso acarreta mudanças formais. O verbo (é/era) e o demonstrativo (esse/aquele) tiveram que ser mudados para encaixar a frase do senhor Flores no contexto, no aqui/agora, determinado pelo narrador. Pela voz citante. Essa é uma das maiores graças do DI.

Quando napoleão disse, "do alto dessas pirâmides 40 séculos nos contemplam", ele estava diante das pirâmides, e estava falando do seu momento presente. Se eu cito em discurso direto, como acabei de fazer, isso não é um problema.

Agora se eu quiser citar em DI, vou ter que adaptar a frase dele ao fato de que no meu discurso só há o meu aqui e o meu agora, e vai ter que ser, algo como "quando napoleão disse que do alto DAQUELAS pirâmides 40 séculos OS contenplAVAM...."

Formalmente, em português, o discurso indireto fica geralmente caracterizado por aquele QUE. Ao invés de disse/pensou etc, vai ser sempre disse que/pensou que etc...

(mas reserve, pro futuro, a informação de que, aqui, de alguma maneira, em algum grau, o narrador "chama para si" a responsabilidade pela caracterização do chefe como "chato".)

DISCURSO INDIRETO LIVRE

Se no DD o discurso citado mantinha autonomia semântica & formal;

Se no DI ele mantinha autonomia semântica, mas perdia a autonomia formal (as palavras citadas não são "exatamente" as que foram pronunciadas, afinal o senhor flores não disse "AQUELE chato");

No DIL o que acontece é que mesmo a autonomia semântica fica questionada, é de alguma maneira encampada pelo discurso citante...

Vamos por partes.

Formalmente, a definição de DIL é incrivelmente simples. Ele é exatamente o que o nome diz. Um tipo de discurso CITADO, segundo a cartilha do discurso INDIRETO (ou seja, com todas aquelas acomodações de eu/aqui/agora), mas LIVRE. 

Livre de quê? Livre do aparato do verbum dicendi.

O Senhor Laércio Flores entrou na sala irritado com a conversa que teve com o gerente. Era difícil demais agradar aquele chato.

E pronto. A frase do Flores está, formalmente, exatamente como estaria ("era"... "aquele") caso tivesse sido citada em DI. Mas não há verbum dicendi. Não há aparato de citação. A bem da verdade, formalmente nem parece discurso citado. A semântica & a forma foram encampadas. 

O que abre zilhões de possibilidades legais.

E a primeira delas é que aquela distinção entre "disse" e "pensou", por exemplo, deixa de ter lugar. 

Ora, se eu não uso o verbo que introduz a citação, eu nem preciso dizer, e nem preciso saber, se ele disse OU pensou.

Se a gente lembrar ainda que os verba dicendi (e o plural é esse mesmo) podem matizar a recepção também ("mentiu", "exagerou", "contemporizou"), esse é outro fator que vai pras cucuias no DIL.

Ou seja, o narrador, de um lado, se apropria totalmente da voz do personagem. Ela não tem mais autonomia formal/sintática. Não tem mais autonomia semântica. A semântica está "misturada".

Mas, de outro lado, o narrador abre mão de todo um campo de sobredeterminação que antes era seu. Ele como que vira parte do personagem, ou vice-versa, e de certa maneira perde características de superioridade ou no mínimo de posterioridade temporal. Ele não está de longe, descrevendo, está do lado, sentindo, dizendo, pensando junto com o personagem.

O que abre mais e mais zilhões de possibilidades legais.

Uma delas é a de o narrador dar voz a coisas que nem voz tem. Foi o que o Graciliano Ramos quis fazer em Vidas Secas

Como imputar palavras a pessoas que são descritas como quase averbais? Ora, assim. 

Em DIL eu nem preciso supor que elas efetivamente "disseram" ou "pensaram" aquilo.

Ou seja. No DD eu tenho que supor que

1. A pessoa citada disse aquilo (conteúdo)

2. Ela disse daquela forma (material), ou seja, com aquelas palavras

Eu POSSO desmentir alguém que diga "Jânio Quadros declarou: 'Eu o fiz porque o quis'", com base no fato de que o que ele "disse" foi "Fi-lo porque qui-lo".

No DI eu suponho que

1. Ela disse aquilo

2. Não com essas palavras (há os ajustes de aqui-agora)

Eu NÃO POSSO desmentir alguém que diga "Jânio Quadros declarou que fez porque quis." Não faz parte do "contrato" da citação em DI a ideia de que as palavras citadas foram efetivamente enunciadas anteriormente. O contrato é basicamente semântico.

No DIL

1. Ela poderia ter dito aquilo

2. E poderia ser com aquelas palavras

Logo, posso falar de um paramécio: 

O paramécio estava nadando num lago infecto e disse: "É dura a vida dos protozoários!" 

Posso. Mas só numa estorinha infantil, numa fábula, numa parábola kafkiana etc. 

E o mesmo vale pra:

O paramécio estava nadando num lago infecto e disse que  a vida dos protozoários era dura. 

(E trocar esse "era dura" de lugar é super normal no DI. Afinal, o narrador, ao fazer os ajustes de aqui/agora já deixou claro que não assinou nenhum documento que declare que foram exatamente aquelas as palavras. O importante é não ofender a semântica.)

Mas veja que, estranhamente, eu encaro melhor, sem supor uma eventual microbiolalia, o texto:

O paramécio estava nadando num lago infecto. Era dura a vida dos protozoários.

Nada nele "declara" que o texto da segunda frase "é" do paramécio. Posso seguramente supor que se trata de uma avaliação do meu narrador. Mas aquele "era", essa importação da dêixis (que é o nome técnico daquele "aqui/agora") fica ali pra insinuar que a visão não é a do narrador. O narrador insinua, pela sua escolha de tempos verbais, demonstrativos, pessoas do verbo, que aquele discurso que, formalmente, é dele, pertence em algum nível semântico/psicológico ao personagem que ele está acompanhando.

Retirante nordestino

Paramécio

Camada de xisto no subsolo

Leopold bloom

Tanto faz.

É muito incrível.

Uma outra (das possibilidades bacanas no DIL) ocorre especialmente em textos em que o seu uso se torna constante. E decorre do fato de que há nele aquela sensação de quebra de fronteiras, de "mistura" entre vozes e consciências de narrador e personagem. O que pode rolar nesses textos é a prevalência de uma "incerteza" quanto à procedência das frases. É o narrador que está dizendo, ou ele está imputando ao personagem? Pense no texto abaixo.

O senhor Laércio Flores entrou nasala irritado com a conversa que teve com o chefe. Estava cansado.

Aquele "estava cansado", num texto cheio de DIL, pode ser lido como DIL. Mas não PRECISA. Daí o fato de a gente normalmente reservar o uso do termo DIL pra aqueles momentos em que não só a dêixis marca a possibilidade mas em que também há penetração de estilos, de vocabulários, em que o texto citado carrega uma "marca verbal pessoal", tipo

O senhor Laércio Flores entrou na sala irritado com a conversa que teve com o chefe. Estava mais cansado que advogado de político corrupto.

Num texto em que o narrador nunca tenha se dado a esses arroubos popularescos e em que o senhor Flores, por exemplo, goste desse tipo de expressão.

Deu pra entender?

Essa quebra-de-fronteira, registrada na palavra "livre", abriu também a possibilidade de se chamar o monólogo interior de "discurso direto livre", pelas mesmas razões. Mas isso é mais complicado.